Desde que iniciou de seu contato com a arte aos 10 anos, Adriana demonstrou um interesse muito particular pela cor preta. Com a utilização quase compulsiva dessa cor, ela desenvolveu vários trabalhos bastante significativos. Quando ela começou a fazer suas primeiras incursões por outras cores, elas pareciam atuar como uma espécie de colaboradoras dos pretos que ela ainda priorizava e que tanto a representavam.
Certo dia, numa aula, depois de ter sido apresentado ao grupo a técnica da têmpera de ovo, Adriana se aproximou de mim já nos últimos minutos de aula trazendo um pote de preto e alguns potes de cor fabricados pela turma. Lentamente começou a pingar cores dentro do preto. Distante da minha própria sensibilidade cheguei a pensar em conter aquele processo, já que racionalmente tudo iria inevitavelmente se manter preto, e portanto, ela estaria apenas “estragando” material. Por sorte me contive e consegui observar a sua pesquisa sem reprimi-la. Afinal, provavelmente seu objetivo era mesmo observar as cores sendo engolidas pelo preto e me fazer compartilhar de sua pesquisa.
– Que esquisito…Continua preto. Me disse ela.
Fiz então um carinho, dei um sorriso e lhe disse:
– Vamos arrumar a sala? A aula acabou.
Horas depois, me dei conta que talvez ela estivesse tentando simbolicamente me falar como era difícil ou mesmo escassas as possibilidades em sua vida para modificar o preto. Talvez as cores viessem mesmo sendo engolidas e fomentando a sua descrença nas mudanças.
Muitos são os significados que podem caber numa ação artística, mas na verdade decodificar os símbolos que se constroem a partir dela não é exatamente fundamental. Fundamental é permitir que elas ocorram, dar espaço, acolhê-las, mesmo quando não há compreensão de seu significado.
Confesso que naquele momento eu não fui capaz de perceber a amplitude da experiência que aquela menina compartilhava comigo. Talvez eu pudesse ter ido mais além dialogando a respeito dos pretos, das possibilidades de se constituírem avermelhados, azulados, amarelados, acinzentados… sem no entanto, deixarem de ser essencialmente pretos. Mas acho também que é comum existir nos profissionais a sensação de que é sempre pouco o que se faz, principalmente quando se tem consciência do muito que em certos casos precisa ser feito.
Percebe-se que algumas crianças, especialmente as que se desenvolvem em ambientes de precariedade e desestrutura, costumam reprimir ou dissimular seus verdadeiros desejos. No entanto não há como eliminarem por completo, sem deixar vestígios, o desejo de uma casa, de uma família, de acolhimento, afeto, paz, beleza e até consumo. São muitos os recursos utilizados por elas, na tentativa de manterem esses desejos distantes, para que assim possam tentar reduzir suas frustrações. Um olhar de desconfiança, descrédito e apatia sobre a vida; às vezes de desrespeito ou arrogância como o espaço e ou colegas. Um aparente desinteresse pelo que é proposto nos ambientes de ensino, além de desempenhos estereotipados, são algumas formas freqüentes de autoproteção adotadas.
Basta observar os produtos artísticos de crianças imobilizadas pelo medo e a experiência constante da frustração para se notar que quando os primeiros registros legítimos são conquistados, elas dão inicio a importantes contatos com elas próprias e assim, gradativamente, vão tomando contato com a potência existente na linguagem que é oferecida pela arte. De posse dessa linguagem elas podem passar a expressar seus conflitos, inclusive aqueles produzidos pela proximidade entre o desejo e a impossibilidade de realização.
Através da arte, lares são idealizados, casas são construídas, prazeres são realizados, pessoas se casam, se amam e amores são confessados. Bonito ver quando flores, pássaros e corações, tomam lugar como formas simbólicas e assim se manifestam.
Durante esse processo, podem-se observar representações dirigidas para “construção” de situações que alguns julgam ideais, como desejos de conquista, ou também como recurso para o “exorcismo” de situações de dor, repulsa e conflito; como por exemplo, nos casos de violência e abusos.
O que relatei sobre a Adriana nos mostra que não é só através nos produtos artísticos que se enxergam situações de transferência, mas também durante muitos processos criativos.