Certa vez, num dos núcleos do projeto Eu sou que funcionou durante 2 anos na favela do Borel, no Rio de Janeiro, numa época em que a comunidade era tomada por muita violência, a professora e eu percebemos a recorrência de uma forma que aparecia sempre nomeada como “Nuvem com chuva” pelos alunos e na maioria dos trabalhos.
Não se tratava de um caso típico de estereótipo, parecia ser mesmo uma forma que obedecia a uma significação comum a quase todos daquele grupo entre 8 e 12 anos.
Como surgiu:
Foi apresentada numa aula a proposta artística que chamamos de: “Construção com linhas”. Nessa proposta cada aluno deposita num espaço na mesa, previamente limitado, um pedaço de barbante. Em seguida, utilizando a técnica de frotagem*, cada um escolhe e faz o registro no papel de uma parte escolhida da composição que foi construída em grupo. Depois de transferida a parte, o aluno faz intervenções com desenhos, pinturas e ou colagens, tomando essas linhas e formas como estrutura que receberá essas intervenções individuais.
Os resultados produzidos foram bastante criativos. Foi através dessa proposta que se observou que eles chamavam algumas formas de “nuvem com chuva”.
Justamente por ser algo que não havia sido previamente nomeado ou seja, não chegou como linguagem pronta (como acontece com os estereótipos comuns), estávamos portanto, frente a algo um tanto inusitado: um código desenvolvido naquele momento, especialmente dentro daquele grupo. Aquela ocorrência aguçou a nossa curiosidade e o desejo de decifrá-la, não só para promover uma maior aproximação entre a professora e o grupo, mas também pelo recurso arte-educacional que utilizamos que é o das “Práticas reflexivas”, em que cada nova proposta apresentada considera uma ocorrência anterior como fala artística de um aluno ou de um grupo e essa “fala” deverá dialogar com a proposta que será trazida pelo professor num próxima aula. Portanto, toda proposta artística que é apresentada considera um acontecimento (ocorrência) para conceitualizar a proposta que seria trabalhada no nosso próximo encontro.
Por isso, na aula seguinte, foi proposta uma atividade que chamamos de “Livre construção poética”.
Trata-se de um processo bem simples:
Depois que todos estão dispostos em círculo, o orientador lança uma palavra ou frase e pede que se façam livres associações, sem racionalização ou compromisso com acertos. A essa palavra acrescenta-se a pergunta: …a palavra te lembra? Feita essa livre analogia (sem que seja justificada) temos uma segunda palavra a qual caberá de novo a mesma pergunta: Te lembra?
Nesse caso demos início à construção poética considerando o que nos parecia ser o código do grupo: “Nuvem com chuva”.
Obteve-se então o seguinte resultado:
NUVEM COM CHUVA (me lembra…)
CÉU
ARVORE
AZUL
NATUREZA
BICHO
NATUREZA
PORRADA
BRIGA
DISCUSSÃO
MATAR
SOCO
PORRADA
TIRO
BRIGA
SANGUE
Nesse caso, observa-se que a construção poética realizada pelo grupo tem início com certa formalidade socialmente esperada (parte em preto), mas que ao se desenvolver (parte vermelha) se legitima e assim parece nos responder ao código.